A socióloga Luciane Silva avalia impactos socioeconômicos referentes à pandemia e ao suposto fim do benefício federal
Socióloga e professora da Uenf, Luciane Silva (Foto: Reprodução)A última edição do Jornal Terceira Via destaca a reportagem “E quando o auxílio do Governo Federal acabar?”, e conta com a participação de diferentes especialistas. A socióloga Luciane Silva é professora da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro. Ela analisa as questões políticas, sociais e econômicas no que diz respeito ao fim do auxílio emergencial previsto para dezembro, segundo o presidente Jair Bolsonaro. A redução para R$300 e R$600 deve gerar diferentes impactos. Outras esferas executivas, como o Governo do Estado do Rio de Janeiro e a Prefeitura de Campos dos Goytacazes também devem assumir suas responsabilidades com políticas públicas, defende a pesquisadora. Ela tem percorrido locais de extrema pobreza do município, onde a pandemia fez piorar os já graves problemas relacionados à sobrevivência de milhares de famílias.
O que destacaria do ponto de vista social neste período de pandemia e como avalia o auxílio emergencial concedido pelo governo federal?
Desde o início da pandemia, começamos um trabalho em Campos com a população em situação de rua, e acompanhamos essa população até a ida para o abrigo Manoel Cartuxo. Posteriormente, me interessou, circulando pela proximidade da Uenf, pensar essa periferia que segue com os bares abertos, padarias, circulação. E com a curiosidade de saber se essas pessoas estavam com Covid, demos início a uma pesquisa na comunidade Portelinha especificamente. Foi absolutamente importante para entender, não só a quantidade de pessoas desempregadas que são a grande maioria nesse espaço territorial; e como o auxílio emergencial impacta nos serviços básicos como alimentação. Das entrevistas que cobrem aproximadamente 100 pessoas, considerando os núcleos familiares de residências em que convivem crianças e recém-nascidos, em uma média de três a cinco, o auxílio é a forma da manutenção desses núcleos.
Se a gente expande essa reflexão para uma região como a Tapera, o Morar Feliz em Ururaí, onde a realidade é semelhante, além das trabalhadoras de materiais recicláveis que receberam cestas básicas no início da pandemia por ficarem sem trabalho, nós temos uma regularidade de uma população em sua maioria negra, com 3 a 5 filhos ou netos, que fazem uso dos serviços públicos e que vivem de trabalho informal: são o público preferencial desse auxílio. Portanto, isto tem impacto no cotidiano dessas pessoas. É importante dizer que Bolsonaro tenta fazer um uso desse auxílio nesse momento, o que não deveria, pelo de fato de ser uma questão humanitária.
Longas filas na Caixa Econômica Federal para recebimento do auxílio emergencial (Fotos: Carlos Grevi)
O auxílio financeiro do governo teve redução para R$300. O que isto poderá resultar para os assistidos?
A considerar o preço da cesta básica desde o início da pandemia, em função da distribuição frequente para trabalhadores terceirizados da Uenf e moradores da Portelinha, as pessoas já estão passando fome. A fala de um das entrevistadas na pesquisa foi: “Eu tenho um neto recém-nascido e outro pequeno. Às vezes, ele pede comida e nem sempre tem”. A fome foi intensificada na pandemia. Façamos o cálculo do que será possível comprar em termos de alimentação com esse valor de R$300. A cesta básica que entreguei para uma família de três pessoas está custando R$120. Boa parte dessa população que necessita do auxílio reside em núcleos com mais de três pessoas. Um pacote de cinco quilos de arroz está a quase R$30. Nós podemos ter uma crise humanitária grave em relação à fome, de pessoas que não terão como suprir suas necessidades diárias. Um elemento que me chama à atenção sobre idade e peso das crianças em Campos. É visível que elas estão abaixo do tamanho e do peso ideais. Isto tem a ver com a condição nutricional diária. Em pesquisas em favelas do Rio de Janeiro encontramos pobreza, mas nem sempre há miséria, é diferente. Uma das formas dos pobres exaltarem sua condição de dignidade é dizer que não falta comida na mesa. Esta é uma das condições asseguradas em sua formulação sobre trabalho e família. Na Portelinha, falta comida constantemente. Quando se tem que escolher entre as pessoas que serão alvo dessa política, pensando que 45 mil famílias em Campos vivem na pobreza extrema (dados do Ministério do Desenvolvimento Social, do Cadastro Único, que consideram pessoas que recebem de zero a R$89 por mês como de extrema pobreza), nós estamos já vivendo os resultados da subnutrição velada e da desnutrição no município.
O que pode ser feito por parte das autoridades para “socorrer” os mais vulneráveis durante crises sanitária e financeira?
Desde o início da pandemia nós estivemos em situações de conflito com o poder público local. Em primeiro lugar, a operação que afasta o atual governador Wilson Witzel tem origem no desvio de dinheiro de saúde em combate à pandemia. Em segundo lugar, em Campos, temos um processo de entrega de kits de merendas apontados como superfaturados. O importante é perceber a falta de organização e articulação entre as secretarias, com burocratização excessiva, a considerar a fala de um representante da Secretaria de Assistência Social em reunião do Conselho Municipal. Não se sabe onde foram parar recursos federais recebidos por Campos dos Goytacazes para compra de equipamentos de proteção individual, entrega de cestas básicas e aluguel social.
Dizer que as secretarias estão com expediente reduzido, que leva um mês para liberação de recurso não é aceitável neste momento. A pandemia escancara processos de má gestão do dinheiro público em níveis estadual e municipal; processos de corrupção por uso inadequado de recursos, já que são suspensas a necessidade das licitações em período emergencial. Nós percebemos a crueldade dos gestores que, vendo a dramaticidade e tragédia cotidiana dessas famílias, escondem-se atrás da burocracia e voluntarismo para não dar conta de suas obrigações enquanto gestão pública.
Não termos o hospital de campanha, vacinas necessárias é inaceitável; e não termos transparência no debate sobre recursos é a pior parte. É pressupor que a sociedade civil não tem maturidade para se interar sobre o uso de milhões para esses fins. A gestão municipal atual parece ter aversão ao debate público com o povo. Isso aconteceu em reuniões sobre orçamento participativo. Este tipo de tratamento favorece o que há de pior na “velha política”: o clientelismo, as formas de dominação com base em RPA´s e não em concurso público.
Morar Feliz: desafios sociais em Campos
Politicamente, como manter a economia funcionando e auxiliar a população em suas necessidades mínimas neste momento?
Algumas prefeituras do Rio de Janeiro como Maricá, Niterói e Macaé tiveram a capacidade de se reconstruir na pandemia, auxiliando de forma eficaz a população. O prefeito de Campos tem vindo pouco a público para externar dados à população com debate franco sobre o que tem acontecido. Não há indicação explícita sobre o combate à extrema pobreza e fome nesse momento. Existem muitas justificativas e desculpas por parte do poder público. Raramente são apresentadas razões eficazes para mitigação da questão. Quanto ao governo estadual, o que se sabe desde o início do ano e da pandemia que a situação do governador se tornou sobreposto ao assunto da Covid. A renegociação do estado para a recuperação fiscal, para os gestores o que importa é que o Rio de Janeiro pague a dívida, sem importar se vai tirar recursos da saúde e da educação. Nós não temos concursos. As situações das organizações de saúde são calamitosas.
A posição do ministro Paulo Guedes de vender estatais, culpar servidores, e sugerir o auxílio emergencial de R$200 lá no início; todo esse clima no Brasil favorece a ações equivocadas. Não vêm para o mundo cotidiano o tema da fraternidade política. Lembro do Betinho que dizia “quem tem fome, tem pressa”. A fome impacta diretamente na saúde. O poder público fala nessa forma da comunicação e na forma do auxílio que não seja apenas a transferência de R$300, R$600 ou outro valor para a população. Isto é importante a curtíssimo prazo, mas a médio e longo prazo, quando se pensa a recessão dos empregos formais, de uma rede de comércio que fecha e não abre mais em Campos, só a transferência de renda não é suficiente.
Conjunto Habitacional da Portelinha (Foto: JTV/Arquivo/Ilustração)
Com a redução do auxílio emergencial à metade até dezembro, e, possivelmente, com sua extinção, como apontaria o futuro nesse aspecto?
Acho que dificilmente será extinto totalmente esse auxílio do governo por tudo que já descrevi até aqui. Imaginemos o Natal em Campos sem o auxílio emergencial para as famílias carentes e para os estabelecimentos comerciais. Como, se o dinheiro não circula? O que a pandemia nos mostrou e que parte das pessoas não aceita, é que não é não possível tratar a população de rua se queremos o combate à Covid. Não estamos isolados. O mercado depende da circulação do dinheiro. A maior parte da classe média, da classe trabalhadora formal e informal precisam do dinheiro vivo. A retirada desse auxílio seria uma catástrofe. Há outras áreas que também precisam de recursos, além da transferência de renda, como o fortalecimento da saúde básica, da assistência social, formas de educação que não excluam alunos sem acesso à internet. Nunca foi tão importante uma gestão pública responsável no Estado em suas três esferas: Federal, Estadual e Municipal. Nunca foi tão decisivo na vidas pessoas em uma pandemia que essas gestões funcionassem. Faltou campanha educativa por parte dos governos ao combate à Covid. É preciso mais investimento do Estado no combate à pandemia. Enquanto isso não for um consenso, ficaremos nesse limbo. A propaganda que o presidente fez com a cloroquina produziu um efeito de descrença em parte da população que o apoia, na gravidade da pandemia. O que faz com que outras pessoas se contaminem, mesmo tendo cumprido as exigências da Organização Mundial da Saúde.
Terceira Via
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