Economistas acreditam que o crédito consignado pode tirar comida da mesa da população vulnerável Foto: Emily Almeida / Agência O Globo/Letycia Cardoso
Com a reformulação do Bolsa Família, o governo de Jair Bolsonaro pretende, além de aumentar o valor do benefício, dar acesso ao crédito consignado — empréstimo em que as parcelas são descontadas no contracheque — e oferecer incentivos por prática de esportes e desempenho escolar. A informação foi publicada pelo jornal "O Estado de S. Paulo", que teve acesso à minuta da medida provisória, e confirmada pelo EXTRA. Especialistas alertam que a medida pode diminuir ainda mais a renda disponível para uma população que já é vulnerável.O programa social, que mudaria de nome no próximo ano para Renda Cidadã, teria o valor médio do benefício aumentado de R$ 190 para R$ 250. E, para pedir o consignado, as famílias só poderiam comprometer até 30% do valor do benefício mensal com o pagamento das parcelas.
A economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) Ana de Holanda Barbosa avalia que o objetivo é dar estímulo à atividade econômica neste momento de crise, favorecendo o consumo. No entanto, ela pondera que, como qualquer crédito, há risco de endividamento caso o consumidor não saiba administrar as próprias finanças.
Daniel Duque, pesquisador da área de Economia Aplicada do FGV IBRE, considera que a mudança é positiva por permitir maior acesso a crédito a uma população que sempre teve dificuldade em obtê-lo pela falta de garantias.
Paulo Vasconcelos, coordenador da Comunidade Católica Gerando Vidas, que promove ações de empregabilidade e de distribuição de cestas básicas, rebate por acreditar que a novidade vai "gerar endividamento aos mais necessitados".
— O valor pago pelo Bolsa Família é tão baixo, e os alimentos estão com preços tão altos, que as pessoas vão buscar o consignado num ato de desespero, porque está faltando alguma coisa dentro de casa. É diferente de quem tem carteira assinada e pega o crédito extra com planejamento. Depois, o valor recebido a cada mês vai ser menor, por causa das parcelas, e a situação desse cidadão não vai melhorar — argumenta.
Kiko Afonso, diretor-executivo da Ação da Cidadania, que combate a fome e a miséria no país, classifica a novidade como trágica. Em sua visão, o público-alvo, que já não tem educação financeira, será seduzido por uma oferta de crédito com juros que vai diminuir o dinheiro disponível mensalmente por um prazo extenso.
— É dar crédito para comprar uma geladeira, um fogão, mas, no dia a dia, tirar do que essa pessoa recebe para comprar comida. As soluções desse governo olham para o pobre como alguém que merece receber sobras ou alimentos fora da validade, e que o seu pouco de dinheiro pode ser colocado nas mãos do sistema financeiro. Para mim, essa é uma maneira de agradar ao mercado — diz Afonso.
O diretor-executivo da Ação da Cidadania ainda lembra que o valor do benefício não é atualizado desde o Governo Temer e que, nos últimos anos, a fila de famílias que desejam ser inseridas no programa só aumenta. Enquanto isso, a inflação corrói o poder de compra dos mais vulneráveis.
— Acredito que, se fosse para oferecer crédito, essa linha teria que ser subsidiada pelo governo, sem pagamento de juros por essas pessoas. Já vimos, a partir do auxílio emergencial, que esse recurso roda a economia, gera impostos e empregos. Mas direcionar 30% do Bolsa Família aos bancos em forma de crédito consignado é um escândalo — critica.
Flutuação de renda
Sérgio Firpo, professor de Economia do Insper, tem outra sugestão. Ao invés do crédito consignado, ele defende oferecer uma espécie de "seguro oscilação de renda" para beneficiários do Bolsa Família que são autônomos e que têm rendimentos muito variáveis ao longo do ano. A adesão seria opcional e, caso precisasse, o trabalhador acionaria o sinistro para obter a ajuda momentânea.
— O Bolsa Família é bem desenhado para a extrema pobreza, mas não é o melhor modelo para o trabalhador urbano. O autônomo não se enquadra como extremamente pobre, porém tem uma flutuação de renda cinco vezes maior do que a dos ricos em um ano, o que tira sua capacidade de poupança. Já temos um sistema financeiro que seria capaz de atender o trabalhador nesses momentos com agilidade — avalia.
Firpo ainda opina que a iniciativa do crédito consignado contradiz o argumento de que o empréstimo serviria para estimular o empreendedorismo e a emancipação financeira.
— Essa linha é de longo prazo. Um aposentado e um servidor, por exemplo, terão renda certa por muito tempo e, por isso, poderão aderir ao empréstimo. Então, ao permitir o consignado para o Bolsa Família, espera-se que eles (os beneficiários do programa social) fiquem por muito tempo recebendo a ajuda do governo? — questiona.
Vivian Almeida, professora de Economia do Ibmec, alega que o consignado pode se tornar uma armadilha para muitos consumidores, nascendo como incentivo à produção e culminando em um desfecho de menor renda disponível:
— Enquanto o mundo discute a renda básica de cidadania, em que as pessoas recebem renda e fazem o que quiserem, esse programa já nasce com a possibilidade de 30% serem direcionados a empréstimo.
Incentivo a esporte e desempenho
A economista do Ipea Ana Luiza Neves vê com bons olhos os incentivos prometidos para bom desempenho de estudo e para a prática de esportes. Para ela, a pandemia está promovendo o afastamento de muitos estudantes do ambiente escolar, o que terá reflexo econômico no futuro, com uma mão de obra de conhecimentos rasos.
Já a economista Vivian Almeida defende os incentivos como instrumentos complementares para o aumento do bem-estar de modo multidimensional porque, em sua opinião, para viver bem o indivíduo não precisa apenas de renda, mas também de educação e saúde:
— Quando o Bolsa Família foi criado, a obrigatoriedade era manter as crianças na escola e estar com a vacinação em dia. Isso tudo é interessante e desejável pelo aspecto múltiplo.
O pesquisador Daniel Duque, no entanto, diz que recompensar apenas os resultados finais não é a solução.
— Há uma extensa literatura mostrando que as pessoas querem melhorar seus estudos, mas não sabem como. Então, ao invés de gratificar só o resultado final, é preciso investir em políticas ativas nas escolas — analisa Duque: — Há vários meios para premiar o desempenho escolar, como recompensar o dever de casa ou as notas em relação ao ano anterior do próprio aluno. Políticas que beneficiam apenas o resultado final acabam não sendo eficientes para quem mais precisa.
Perguntado sobre o tema, o Ministério da Cidadania disse que não tem ainda detalhes sobre a proposta.
Fonte Extra
Nenhum comentário:
Postar um comentário