domingo, 22 de outubro de 2023

Medo e necessidade andam juntos no transporte por aplicativo

Mulheres relatam insegurança e violência

(Fotos: Silvana Rust)

Clícia Cruz e Ocinei Trindade

Em uma tarde de sábado, uma mulher solicita carro de aplicativo para ir a um determinado bairro de Campos dos Goytacazes. No caminho, é vítima de assédio e violência sexual por parte do motorista. Ferida, procura por ajuda no pronto socorro do Hospital Ferreira Machado. O relato dramático foi compartilhado por algumas pessoas que atuam na unidade. Com medo e vergonha, a mulher opta em não registrar o crime na delegacia. O suposto caso não foi confirmado nem negado pela assessoria do HFM, que diz zelar pela segurança e privacidade dos pacientes. No entanto, os casos de violência sexual registrados pelo hospital dispararam nos últimos quatro anos. O transporte público é um dos locais onde agressores costumam abordar e atacar as vítimas que, na maioria, são mulheres.
Receio | Adriana Medeiros não se sente segura no transporte
Público ou com carro de aplicativo e prefere mototáxi

Faz tempo que a professora e atriz Adriana Medeiros se sente insegura quando está sozinha e necessita andar em táxis ou automóveis de aplicativos, além do transporte público em geral. “Eu não me sinto segura porque há riscos de furtos, roubos, assédio. É uma loucura. O problema não é o transporte público, mas o ser humano que está muito doente. Os aplicativos, eu considero como transporte público. A gente escuta as narrativas sobre estupros, violência, assédio. O serviço pretendia garantir uma viagem tranquila”, comenta. A preocupação com supostos ataques de motoristas a fez optar por motocicleta de aplicativos. “Tenho uma amiga que foi atendida por motorista visivelmente embriagado. Já ouvi relatos de motoristas com tornozeleiras eletrônicas. Eu queria saber qual o tipo de exigência das empresas para contratar. A gente não está conseguindo confiar. Há também comentários de violência com passageiros homens. Isso me levou a preferir andar de bicicleta ou pegar o moto em corridas de aplicativo. Acho que a qualquer movimento suspeito, poderia pular da motocicleta, mesmo com risco de me arrebentar. Estou muito assustada. Soube de um aplicativo com mulheres motoristas, mas nem sempre está disponível”, desabafa.

Violência sexual em Campos
De acordo com as estatísticas do Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro (ISP), de janeiro a agosto deste ano, foram registradas 80 ocorrências de estupro em Campos. Deste total, 59 crimes de estupro ocorreram na área da 134ª DP (Centro). Na área da 146ª DP (Guarus), foram registrados 21 casos deste crime. No mesmo período de 2022, a 134ª DP havia registrado 64 estupros, o que significa uma queda de 7.8% este ano. Em Guarus, de janeiro a agosto de 2022 foram registrados 41 estupros, o que significa que houve uma queda de 49% do registro desse crime na área em 2023.

O Hospital Ferreira Machado informou que, devido a questões de privacidade e segurança de pacientes, não divulga dados detalhados sobre atendimentos médicos. “O HFM preza pelo respeito à confidencialidade dos pacientes e o cumprimento das normas éticas e legais relacionadas à assistência médica”, diz em nota. No entanto, a unidade forneceu números sobre violência sexuais ainda maiores que os relatados pelo ISP. É que muitas vítimas não fazem a ocorrência policial na delegacia.

Números do HFM
De acordo com o HFM, as vítimas recebem assistência médica, suporte psicológico e acompanhamento pelo Serviço Social. Quando necessário, o médico prescreve medicação (profilaxia) se a vítima comparecer ao hospital dentro de 72 horas após o incidente. As vítimas são acompanhadas pelo Centro Especializado de Doenças Infecto-Parasitárias (CEDIP). Ainda segundo o HFM, todas recebem apoio clínico e emocional, orientação para suas famílias, sensibilização, orientação e encaminhamento para o Centro de Atendimento à Mulher (Ceam) e a Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam). Em todos os casos, o HFM notifica a Secretaria de Saúde através do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), procura por familiares quando a vítima chega à unidade sozinha, e o hospital atende vítimas encaminhadas pela Deam.

Assistência às mulheres
Através da Subsecretaria Municipal de Políticas Públicas para as Mulheres, o Centro Especializado de Atendimento à Mulher (Ceam), recebe as vítimas de estupro para um trabalho interdisciplinar. A subsecretária Josiane Vianna diz que existe um fluxo de atendimento na rede de saúde com encaminhamentos para o serviço: “Quando a mulher dá entrada, por exemplo, no HFM, ela é encaminhada para o Ceam, para receber todo o acompanhamento psicológico, jurídico e apoio que necessitar. A política de atendimento não é isolada. Realizamos um trabalho nas empresas com palestras, esclarecendo dúvidas sobre assédio moral e sexual no ambiente de trabalho”, explica a subsecretária.

A psicóloga do Ceam, Thaís Monteiro, conta que as vítimas chegam muito fragilizadas, assim como suas famílias. “Tanto ela, quanto os familiares contam com os nossos serviços. Muitas são mulheres que vinham sofrendo violência há anos. Elas demoram muito a ter a coragem necessária para enfrentar o problema e tentar superá-lo”, diz.

A psicóloga Dilma Dias explica que a vítima muitas vezes se sente culpada de ter sido abusada. “Nós temos uma cultura machista, que endossa que a mulher precisa se comportar de uma determinada forma. A menina é ensinada como deve se sentar, enquanto ao menino isso não é ensinado. A mulher é ensinada até a não usar determinadas roupas. Está sempre nesse lugar que tem que se defender. Quando sofre violência sexual, ficam o trauma, o medo e consequências psicológicas. A mulher vai levar essa cicatriz durante a vida. É comum o estresse pós-traumático, problemas de sono, alimentação, dores pelo corpo, prejuízo emocional. O primeiro passo é buscar ajuda. Muitas vezes a mulher guarda isso pra si uma vida inteira, prolongando o sofrimento”, diz.

Questionada sobre o que legitima o comportamento agressor e possessivo de homens que tratam a mulher como objeto sexual, Dilma considera a cultura machista faz acreditar que o homem tem poder sobre o corpo feminino. “É necessário trabalhar a sociedade desde a infância, sobretudo na criação dos homens, dos meninos, dentro dos lares e nas escolas. Isso faz parte do processo de educação”, enfatiza.

Delegada orienta mulheres
A delegada da Deam, Madeleine Dykeman, diz ser cada vez mais comum o relato de mulheres assediadas em corridas de aplicativos. Ela alerta sobre alguns cuidados. “Ao menor sinal de perigo, a vítima deve acionar a polícia ou quem possa socorrê-la imediatamente. Como autoridade policial, aponto algumas dicas para que as mulheres se sintam mais seguras. Antes de embarcar: verificar se a cor, a placa, o modelo e a foto do motorista são as mesmas que aparecem no aplicativo. Se as informações forem diferentes, cancelar a corrida imediatamente. Sempre que possível, compartilhar a viagem com alguém de sua confiança, mandar uma mensagem ao final, informando que chegou bem no seu destino”.

Madeleine lembra que o contato físico é proibido entre a usuária e o motorista. “Se isso acontecer, peça para encerrar a corrida imediatamente e comunique o fato ao aplicativo. É importante que a mulher sente-se atrás do motorista, pois isso dificulta o contato e os movimentos lascivos que ele possa vir a ter”, aconselha.

, como passar as mãos nas pernas e nos seios dela. Essa conduta é crime de importunação sexual e o fato deve ser noticiado em sites policiais. O motorista não pode usar o retrovisor para encarar seus usuários e essa atitude também pode ser considerada importunação. A mulher não deve compartilhar detalhes íntimos com o motorista; se ela bebeu, se ela estava numa festa, se usou drogas, nem tampouco deve informar se o destino da corrida é a sua própria residência. A mulher em situação de perigo, deve acionar a Polícia Militar através de 190, gritar por socorro para alguém na rua. Deve se dirigir à delegacia mais próxima para registro de ocorrência e dar início às investigações”, conclui.


Ônibus para mulheres
No Terminal Urbano, no centro da cidade, um grupo de mulheres aguarda a chegada do Ônibus Lilás, exclusivo para elas. O coletivo faz a linha Centro x Penha e conta com a aprovação das usuárias, que dizem se sentir seguras dentro do veículo. O veículo atende mulheres de todas as idades, pessoas que se identifiquem com o gênero feminino e crianças de até 10 anos acompanhadas de pessoas do gênero feminino.

A aposentada Eurides do Nascimento mora em Guarus, mas visita a Penha com frequência. “As linhas de Guarus, que operam com veículos muito cheios também necessitam do transporte feminino. Na verdade, em Guarus, falta ônibus pra todo mundo, eles vêm lotados. Já vi homens assediando mulheres dentro do transporte coletivo comum”, conta.

Edvalda Alves mora em Campos há seis meses. Utilizou o ônibus exclusivo pela primeira vez. “Morei a vida inteira no Rio de Janeiro. Já presenciei assédios dentro de ônibus e trens na capital. Aprovo a iniciativa do transporte feminino. Dentro deste ônibus a gente fica mais segura. Infelizmente, muitos homens abusam principalmente das mulheres mais jovens”, diz.

Casos de violência sexual notificados pelo HFM nos últimos quatro anos:
2020
l Total: 25
l Idade entre 2 e 33 anos
l Sexo masculino: 3
l Sexo feminino: 22

2021
l Total: 35
l Idade entre 2 e 56 anos
l Sexo masculino: 2
l Sexo feminino: 33

2022
l Total: 111
l Idade entre menor de 1 ano a 50 anos
l Sexo masculino: 16
l Sexo feminino: 95

2023 até 05/10/23
l Total: 130
l Idade entre menor de 1 ano a 67 anos
l Sexo masculino: 15
l Sexo feminino: 115.
Fonte: J3News

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