Apesar de ser maioria no país, população negra ainda enfrenta desafios
Por Ocinei TrindadeCris Lemos
Ana Carolina
Érica Barreto
Gilberto Firmino
Escultura na Fundação Zumbi dos Palmares
Marcelo Benjá
Andreza Cardoso
Rossini Reis Resistência|Superar desafios impostos pelo racismo faz parte da rotina de milhares pretas
Pela primeira vez o dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, será feriado em todo o Brasil. A proposta do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) foi aprovada pelo Congresso e sancionada pelo presidente Lula. Antes, o feriado que marca a morte de Zumbi dos Palmares, um dos principais líderes negros do período colonial, era celebrado em apenas seis estados. Em Campos dos Goytacazes, uma programação é promovida pela Subsecretaria de Igualdade Racial durante todo o mês para mobilização e conscientização. A cidade reflete o que é o país de maioria negra e pobre: desigual. Superar desafios quanto ao racismo, baixa escolaridade e oportunidades de bons empregos faz parte da rotina de milhares de pessoas pretas. Aqueles que conseguem, alegam que a arte, educação e cultura transformaram suas vidas.
A Prefeitura de Campos possui uma Subsecretaria de Igualdade Racial, comandada há quase quatro anos por Gilberto Firmino, mais conhecido como Totinho Capoeira. Ele diz que o órgão propõe o combate ao racismo e a promoção de diversas ações não só em novembro. “Promover a igualdade racial ocorre através de vários mecanismos, assim como o combate ao racismo, que também envolve diversas ações. Uma das iniciativas mais importantes para promover a igualdade racial é o desenvolvimento de ações afirmativas. Temos o curso pré-vestibular e o curso preparatório para concursos, além de cursos voltados à geração de renda, como os de manicure, cabeleireiro, entre outros. Esses cursos proporcionam uma oportunidade para pessoas com baixa escolaridade gerarem sua própria renda”, conta.
O subsecretário destaca a política de promoção da igualdade racial em âmbito nacional. “Existe uma integração entre o Estado, o município e a esfera federal por meio do Sistema Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Sinapir). Funciona de maneira similar ao SUS. É necessário ter um plano municipal, um conselho municipal e um órgão responsável pela Política de Igualdade Racial (PIR). Campos possui esses três requisitos e está alinhado com a política pública em nível nacional. Existem outras formas de fortalecer essa política no âmbito municipal. Uma delas é o diálogo constante com os movimentos sociais e a sociedade civil organizada. As políticas de promoção da igualdade racial são políticas transversais. Dessa forma, o diálogo permanente com as necessidades reais da comunidade negra, permite que essa política esteja sempre em movimento. Conseguimos realizar muitas das metas que estabelecemos. Lançamos o Plano Municipal de Política de Igualdade Racial, que será oficializado no dia 20. Criamos um canal de denúncias por telefone, que oferece atendimento com psicólogos, advogados, assistentes sociais, entre outros profissionais, realizando os encaminhamentos necessários para diferentes setores. O problema do racismo e da promoção da igualdade racial, as mazelas enfrentadas pelas pessoas negras, não são problemas apenas da população negra, mas da sociedade como um todo”, explica.
Totinho destaca que o dia 20 de Novembro foi construído a partir de muitas lutas dos movimentos sociais. “São lutas intensas e consistentes, com grandes marchas que aconteceram nas décadas de 1980, 1990 e até nos anos 2000. Os encontros entre os movimentos sociais e o poder público resultaram na criação da data em homenagem à história do grande líder negro Zumbi dos Palmares. O Dia da Consciência Negra enquanto discussão racial deve acontecer todos os dias”, finaliza.
Representação|Campos possui uma Subsecretaria de Igualdade Racial
Representatividade e ocupação de espaços
A professora de educação infantil e escritora Cris Lemos, de 38 anos, mora na Tapera. Ela publicou dois livros. Cansada de esperar pelo poder público, decidiu criar um espaço cultural e uma biblioteca comunitária em espaço cedido. É a Casa de Cultura Bruno Black, inaugurada em setembro. “Ofertamos, neste momento, oficinas de arte, conto e letramento. Eu cresci na periferia. Quando olho essas crianças, lembro-me de mim mesma, lembro que não houve quem abrisse portas para mim, tudo foi mais difícil e demorado para que eu chegasse onde estou. A ideia de ter um equipamento cultural em comunidades é exatamente para levar perspectivas de uma vida diferente a essas crianças, que só conhecem pobreza e violência. Eu acredito que a cultura pavimentará o caminho delas, com ofertas de um futuro mais digno. Trabalho há dois anos com equipamentos culturais em locais onde o poder público não chega. As escolas só citam o preconceito em datas como estas. Não há uma maior conscientização. Eu já vi crianças negras sendo racistas com outras crianças negras. A literatura e a cultura me ajudaram a desenvolver uma consciência crítica e empática sobre o mundo e as pessoas. Das pessoas que cresceram comigo, a maioria estão mortas. Não é só de tiro que morre um negro periférico. Morre, principalmente, pela ignorância de não saber sobre seus direitos”, diz Cris.
As advogadas Ana Carolina Ramos e Érica Barreto fazem parte da Comissão de Igualdade Racial da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em Campos. Elas aparecem em um grupo ainda pequeno de advogados pretos no país. O número exato de profissionais negros formados e em atividade não é conhecido. “Apesar de algumas evoluções no campo das políticas de promoção da igualdade racial, ainda enfrentamos situações graves de discriminação racial, que precisam ser refletidas diariamente. Infelizmente, nem mesmo a OAB Nacional faz esse levantamento, quantificando apenas por gênero e idade. O que evidencia uma estagnação da instituição, que mesmo após a criação das comissões de igualdade, de reconhecer Luiz Gama e Esperança Garcia como advogados históricos, não buscou reparar essa ausência de dados, que poderia auxiliar na implementação de políticas institucionais mais efetivas”, diz Ana Carolina.
O acesso à universidade foi uma batalha, diz Érica Barreto. “Graças a programas como Fies, Prouni, Sisu e as políticas de cotas raciais, a inserção de pessoas negras no ensino superior aumentou significativamente. O que não quer dizer solução, pois ainda precisamos discutir políticas de manutenção para essas pessoas, que precisam mudar de cidade, se deslocar por longos percursos e, boa parte, trabalhar para garantir o próprio sustento ou da família. A violência do Estado é um dos maiores marcadores que afetam a juventude negra, principalmente no que diz respeito à repressão policial. Além disso, soma-se a falta de oportunidades de trabalho. Temos uma juventude encarcerada ou exercendo horas exaustivas de trabalho informal”, cita.
A gestora de Recursos Humanos, Andressa Cardozo, tem 26 anos de experiência na contratação de profissionais para importantes e grandes empresas da região. Ela analisa a situação do mercado para pessoas negras em Campos: “Hoje, as empresas estão se importando em contratar pessoas com diversas etnias, religiões, buscando o profissional de acordo com suas competências, adequando a necessidade das vagas que estão ofertando. O principal motivo de não contratar profissionais negros é não estar de acordo com as competências necessárias para atuar na função. Acredito que aumentou o número de contratações de pessoas negras. Minha observação é que a inclusão se faz necessária no mundo, não somente nas empresas, porém, na vida, independente de crenças religiosas, etnias, idade. A inclusão faz parte do processo evolutivo e ter pessoas diferentes ao nosso redor, nos faz evoluir como humanos e como profissionais. A cada dia, temos um aprendizado para darmos seguimento a nossa evolução humana. Promover a inclusão de mais pessoas negras em postos de trabalho qualificados é necessário. O processo evolução educacional e a capacitação profissional ajudariam aumentar a inclusão de profissionais negros no mercado”.
Arte, música, transformação
Enxergar na arte uma poderosa ferramenta para a transformação e mudança social. Esta é visão de Rossini Reis. O ator, diretor de teatro e ativista cultural é formado em Pedagogia e Direito. Cursa pós-graduação em História e Cultura dos Povos Indígenas e Africanos no Brasil, e Design de Moda Afrocentrada pela Uenf. Este projeto tem ganhado proporções de valorização da cultura e identidade negra na cidade de Campos, além de perspectivas econômicas. “O projeto de Moda Afrocentrada surgiu no Instituto de Ensino e Pesquisa (Itep) como uma resposta à necessidade de desenvolvimento da identidade, utilizando a moda como um meio de expressão e transformação social; de uma necessidade urgente de fortalecer a identidade da população negra em Campos. A cidade, que conta com um grande número de pessoas negras, ainda enfrenta o desafio de uma parcela significativa dessa população não se reconhecer como tal, refletindo a dificuldade de se apropriar das suas raízes culturais. Essas raízes, muitas vezes, são tratadas de forma equivocada ou pejorativa pela sociedade. Tenho visto mais pessoas se interessando pela moda afrocentrada. Acredito que é um investimento válido. Se tivermos a oportunidade de trabalhar profundamente nessa área, será muito interessante para a economia da cidade. Hoje estamos na segunda turma do curso. Fiz parte da primeira turma, que iniciou no ano passado”, revela Rossini.
O músico Marcelo Benjá também trabalha como produtor e ativista cultural em Campos e cidades vizinhas. Ele observa os poucos artistas negros que conseguem viver exclusivamente da música: “Eu acho que a cultura é fundamental; a cultura transforma vidas, transforma histórias, e eu sou prova disso. São tantas coisas das quais a música e a cultura já me salvaram que é até difícil enumerar todas elas. A música e a cultura precisam estar nas escolas. Não entendo por que os governantes não enxergam isso, por que isso não acontece como deveria. Projetos assim, infelizmente, são raros e deveriam ser o normal. Por que é tão difícil ver negros em evidência, com poder aquisitivo, com bons empregos, bons salários, com dignidade? Por que a maioria da população das favelas é negra? Por que a maioria da população carcerária no Brasil é negra? Falta de acesso, falta de possibilidade, falta de oportunidade. Enfim, é uma corrida extremamente desigual até os dias de hoje. E conhecer a história de Zumbi dos Palmares, isso deveria ser matéria obrigatória também nas escolas. A gente é um povo de memória curta, e o advento das redes sociais, das modinhas no TikTok e na internet, têm gerado alguns problemas”, considera Benjá.
O Dia da Consciência Negra segue desafiando os brasileiros. “Não existe igualdade racial no Brasil. Vinte de Novembro é uma data marcante para mostrar às pessoas que ainda não estamos em pé de igualdade. Não podemos falar ainda de igualdade. Temos que falar de equidade. Precisamos de outros artifícios para alcançar algumas coisas. É sobre o direito do negro. Desde o período da escravidão, e após o término desta, o direito do negro foi ignorado, e isso vem acontecendo até hoje”, cita Rossini Reis. De acordo com o músico Marcelo Benjá, há muito caminho a percorrer. “Há muita educação a ser transmitida sobre esse tema. E o momento é agora. Não basta não ser racista. É preciso ser antirracista”, afirma.
Representatividade e ocupação de espaços
A professora de educação infantil e escritora Cris Lemos, de 38 anos, mora na Tapera. Ela publicou dois livros. Cansada de esperar pelo poder público, decidiu criar um espaço cultural e uma biblioteca comunitária em espaço cedido. É a Casa de Cultura Bruno Black, inaugurada em setembro. “Ofertamos, neste momento, oficinas de arte, conto e letramento. Eu cresci na periferia. Quando olho essas crianças, lembro-me de mim mesma, lembro que não houve quem abrisse portas para mim, tudo foi mais difícil e demorado para que eu chegasse onde estou. A ideia de ter um equipamento cultural em comunidades é exatamente para levar perspectivas de uma vida diferente a essas crianças, que só conhecem pobreza e violência. Eu acredito que a cultura pavimentará o caminho delas, com ofertas de um futuro mais digno. Trabalho há dois anos com equipamentos culturais em locais onde o poder público não chega. As escolas só citam o preconceito em datas como estas. Não há uma maior conscientização. Eu já vi crianças negras sendo racistas com outras crianças negras. A literatura e a cultura me ajudaram a desenvolver uma consciência crítica e empática sobre o mundo e as pessoas. Das pessoas que cresceram comigo, a maioria estão mortas. Não é só de tiro que morre um negro periférico. Morre, principalmente, pela ignorância de não saber sobre seus direitos”, diz Cris.
As advogadas Ana Carolina Ramos e Érica Barreto fazem parte da Comissão de Igualdade Racial da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em Campos. Elas aparecem em um grupo ainda pequeno de advogados pretos no país. O número exato de profissionais negros formados e em atividade não é conhecido. “Apesar de algumas evoluções no campo das políticas de promoção da igualdade racial, ainda enfrentamos situações graves de discriminação racial, que precisam ser refletidas diariamente. Infelizmente, nem mesmo a OAB Nacional faz esse levantamento, quantificando apenas por gênero e idade. O que evidencia uma estagnação da instituição, que mesmo após a criação das comissões de igualdade, de reconhecer Luiz Gama e Esperança Garcia como advogados históricos, não buscou reparar essa ausência de dados, que poderia auxiliar na implementação de políticas institucionais mais efetivas”, diz Ana Carolina.
O acesso à universidade foi uma batalha, diz Érica Barreto. “Graças a programas como Fies, Prouni, Sisu e as políticas de cotas raciais, a inserção de pessoas negras no ensino superior aumentou significativamente. O que não quer dizer solução, pois ainda precisamos discutir políticas de manutenção para essas pessoas, que precisam mudar de cidade, se deslocar por longos percursos e, boa parte, trabalhar para garantir o próprio sustento ou da família. A violência do Estado é um dos maiores marcadores que afetam a juventude negra, principalmente no que diz respeito à repressão policial. Além disso, soma-se a falta de oportunidades de trabalho. Temos uma juventude encarcerada ou exercendo horas exaustivas de trabalho informal”, cita.
A gestora de Recursos Humanos, Andressa Cardozo, tem 26 anos de experiência na contratação de profissionais para importantes e grandes empresas da região. Ela analisa a situação do mercado para pessoas negras em Campos: “Hoje, as empresas estão se importando em contratar pessoas com diversas etnias, religiões, buscando o profissional de acordo com suas competências, adequando a necessidade das vagas que estão ofertando. O principal motivo de não contratar profissionais negros é não estar de acordo com as competências necessárias para atuar na função. Acredito que aumentou o número de contratações de pessoas negras. Minha observação é que a inclusão se faz necessária no mundo, não somente nas empresas, porém, na vida, independente de crenças religiosas, etnias, idade. A inclusão faz parte do processo evolutivo e ter pessoas diferentes ao nosso redor, nos faz evoluir como humanos e como profissionais. A cada dia, temos um aprendizado para darmos seguimento a nossa evolução humana. Promover a inclusão de mais pessoas negras em postos de trabalho qualificados é necessário. O processo evolução educacional e a capacitação profissional ajudariam aumentar a inclusão de profissionais negros no mercado”.
Arte, música, transformação
Enxergar na arte uma poderosa ferramenta para a transformação e mudança social. Esta é visão de Rossini Reis. O ator, diretor de teatro e ativista cultural é formado em Pedagogia e Direito. Cursa pós-graduação em História e Cultura dos Povos Indígenas e Africanos no Brasil, e Design de Moda Afrocentrada pela Uenf. Este projeto tem ganhado proporções de valorização da cultura e identidade negra na cidade de Campos, além de perspectivas econômicas. “O projeto de Moda Afrocentrada surgiu no Instituto de Ensino e Pesquisa (Itep) como uma resposta à necessidade de desenvolvimento da identidade, utilizando a moda como um meio de expressão e transformação social; de uma necessidade urgente de fortalecer a identidade da população negra em Campos. A cidade, que conta com um grande número de pessoas negras, ainda enfrenta o desafio de uma parcela significativa dessa população não se reconhecer como tal, refletindo a dificuldade de se apropriar das suas raízes culturais. Essas raízes, muitas vezes, são tratadas de forma equivocada ou pejorativa pela sociedade. Tenho visto mais pessoas se interessando pela moda afrocentrada. Acredito que é um investimento válido. Se tivermos a oportunidade de trabalhar profundamente nessa área, será muito interessante para a economia da cidade. Hoje estamos na segunda turma do curso. Fiz parte da primeira turma, que iniciou no ano passado”, revela Rossini.
O músico Marcelo Benjá também trabalha como produtor e ativista cultural em Campos e cidades vizinhas. Ele observa os poucos artistas negros que conseguem viver exclusivamente da música: “Eu acho que a cultura é fundamental; a cultura transforma vidas, transforma histórias, e eu sou prova disso. São tantas coisas das quais a música e a cultura já me salvaram que é até difícil enumerar todas elas. A música e a cultura precisam estar nas escolas. Não entendo por que os governantes não enxergam isso, por que isso não acontece como deveria. Projetos assim, infelizmente, são raros e deveriam ser o normal. Por que é tão difícil ver negros em evidência, com poder aquisitivo, com bons empregos, bons salários, com dignidade? Por que a maioria da população das favelas é negra? Por que a maioria da população carcerária no Brasil é negra? Falta de acesso, falta de possibilidade, falta de oportunidade. Enfim, é uma corrida extremamente desigual até os dias de hoje. E conhecer a história de Zumbi dos Palmares, isso deveria ser matéria obrigatória também nas escolas. A gente é um povo de memória curta, e o advento das redes sociais, das modinhas no TikTok e na internet, têm gerado alguns problemas”, considera Benjá.
O Dia da Consciência Negra segue desafiando os brasileiros. “Não existe igualdade racial no Brasil. Vinte de Novembro é uma data marcante para mostrar às pessoas que ainda não estamos em pé de igualdade. Não podemos falar ainda de igualdade. Temos que falar de equidade. Precisamos de outros artifícios para alcançar algumas coisas. É sobre o direito do negro. Desde o período da escravidão, e após o término desta, o direito do negro foi ignorado, e isso vem acontecendo até hoje”, cita Rossini Reis. De acordo com o músico Marcelo Benjá, há muito caminho a percorrer. “Há muita educação a ser transmitida sobre esse tema. E o momento é agora. Não basta não ser racista. É preciso ser antirracista”, afirma.
Fonte:J3News
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