sexta-feira, 25 de junho de 2021

Empresa de Cingapura que receberia pagamento antecipado de R$ 220 milhões por Covaxin está sediada em escritório de contabilidade

Sede em cingapura da empresa Madison Bioech, empresa usada para tentar receber antecipadamente US$ 45 milhões da compra da vacina indiana Covaxin Foto: Agência O Globo / Bárbara Nascimento
Bárbara Nascimento e Paulo Cappelli

A empresa Madison Biotech, sediada em Cingapura, entrou na mira da CPI da Covid após um servidor público revelar, em entrevista ao GLOBO, que a companhia receberia um pagamento antecipado de R$ 222,6 milhões do Ministério da Saúde para importar a vacina Covaxin. A reportagem do GLOBO esteve no endereço informado pela Madison Biotech — e constatou que no local funciona, na verdade, um escritório de contabilidade.

A história tem origem no interesse do Brasil pela compra da vacina Covaxin no final do ano passado. Depois de alguns meses de negociação, no dia 25 de fevereiro, foi assinado um contrato de importação de R$ 1,6 bilhão para a compra de 20 milhões de doses do imunizante, fabricado pela farmacêutica indiana Bharat Biotech, que é representada no Brasil pela Precisa Medicamentos.

O negócio chamou a atenção do servidor do Ministério da Saúde Luís Ricardo Miranda, que prestará depoimento nesta sexta-feira na CPI da Covid. Em entrevista exclusiva ao GLOBO, ele contou que se reuniu com o presidente Jair Bolsonaro em março e listou uma série de suspeitas de irregularidades no processo de importação da Covaxin. A principal delas teria relação com com um documento em que era previsto o pagamento antecipado de US$ 45 milhões (R$ 222,6 milhões) para a Madison Biotech, que não faria parte do contrato assinado entre o Ministério da Saúde e a Precisa, representante da Bharat no Brasil.

O GLOBO foi em busca dos representantes da Madison em Cingapura. O registro da empresa informa que ela funcionaria numa sala em um pequeno prédio comercial de dois andares no 31 Cantonment Road, no bairro de Tanjong Pagar, um distrito histórico perto do setor financeiro. No local, uma sala de acupuntura funciona no andar superior. No piso inferior, uma placa estampa o nome Sashi Kala Devi Associates, um escritório de contabilidade e auditoria com 40 anos de existência.

Lá, uma mulher que se identificou como Sashi afirmou conhecer a Madison, mas disse que não poderia responder por ela. Sashi contou que seu escritório dá suporte a empresas que estão se instalando em Cingapura e afirmou que está prestando serviço para a Madison.

— Nós estamos dando suporte a eles com tudo isso, com o que eles nos dão instruções. Eles vão montar seu próprio escritório, mas não conseguiram vir para Cingapura e contratar as pessoas por conta do fechamento das fronteiras — disse Sashi.

A mesma versão foi dada pelo vice-presidente do Bharat Biontech, Srinivas Vellimedu. Ele sustenta que a Madison Biotech Pte Ltd é uma associada do laboratório.

— Ela atua como uma empresa internacional de compras e marketing para a Bharat Biotech. Todas as transações feitas entre as duas empresas sempre foram destinadas a estar em conformidade com as regras e regulamentos do país e serão realizadas em condições normais de mercado — disse Vellimedu.

Vellimedu pontuou, contudo, que a empresa já está operando, ainda que não tenha conseguido enviar fisicamente sua equipe para Cingapura. Ele afirmou ainda que há um diretor da empresa no país, mas não quis revelar o nome. Ao ser questionado sobre os detalhes do contrato com o Brasil, o vice-presidente se limitou a responder que a equipe responsável entraria em contato. O GLOBO procurou formalmente a assessoria de imprensa da empresa, mas não obteve resposta.

Criada em 14 de fevereiro de 2020, a Madison possui em seu quadro de diretores pessoas ligadas à Bharat Biotech. Uma delas é Krishna Murthy, fundador e presidente da fabricante da Covaxin. A outra é Rchaes Ella, responsável por desenvolver pesquisas de imunizantes.

Consulta ao site oficial do órgão do governo de Cingapura responsável pelo registro de empresas, mostra que a Madison informa ser especializada em "venda por atacado de medicamentos farmacêuticos (Ocidente)". A companhia, que tem sede num distrito histórico da região central de Cingapura, não preencheu os campos "retorno anual", "reunião geral anual" nem registrou "demonstrações financeiras".

Para o consultor Samir Choaib, especialista em direito tributário, o mero fato de a Madison estar sediada em Cingapura não é um indício de irregularidade.

— Cingapura é considerado um paraíso fiscal, concede benefícios fiscais e não é tão rigoroso com quebra de sigilo. É uma jurisdição mais favorável à preservação de sigilo. Mas não se pode dizer que estar em paraíso fiscal é indício de corrupção, pois pode se desfrutar de benefícios fiscais de forma lícita. Tem que se verificar caso a caso, embora empresas mal-intencionadas possam recorrer a paraísos fiscais para dificultar investigações — afirma Choaib.

CRONOLOGIA

A assinatura do contrato entre o Ministério da Saúde e a Bharat Biotech tem início após uma carta enviada pelo presidente Jair Bolsonaro ao primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, em oito de janeiro, anunciando que o Brasil havia selecionado o Covaxin no Programa Nacional de Imunização. Na ocasião, a Anvisa sequer havia analisado a vacina indiana. Dois dias antes de Bolsonaro escrever a carta, o empresário Francisco Maximiano, presidente da Precisa Medicamentos, esteve na Índia com representantes da Bharat Biotech, em uma viagem na qual foi acompanhado do embaixador do Brasil naquele país, André Aranha Correa do Lago.

Na viagem, Maximiano afirmou que a parceria com a Bharat seria uma forma de quebrar o oligopólio da Pfizer, Sanofi e GSK no mercado de vacinas no Brasil e afirmou que pretendia criar uma joint-venture entre sua farmacêutica e a empresa indiana. Apesar de o imunizante Covaxin ser fabricado totalmente na Índia, pelo acordo estabelecido a Precisa ficaria encarregada da distribuição no Brasil, prática que difere da frimada em contratos com as demais vacinas adquiridas pelo governo federal. Até o momento, não se sabe qual a parte que a Precisa levará do contrato de R$ 1,6 bilhão firmado entre o Ministério da Saúde e a Bharat Biotech.

No dia 18 de janeiro, dez dias após a carta de Bolsonaro a Modi, o Ministério da Saúde entra em contato com Maximiano, informando a disposição em iniciar tratativas comerciais. No dia três de fevereiro, o Ministério da Saúde envia à Precisa solicitação da minuta de contrato de compra e venda. Oito dias depois, a farmacêutica brasileira indaga a quantidade de doses de Covaxin necessárias. O ofício é respondido no mesmo dia pela pasta, informando o total de 20 milhões de doses.

Em 18 de fevereiro, houve uma reunião técnica para a discussão dos termos de contrato, e a publicação de dispensa de licitação. Uma semana depois, o contrato foi assinado. Em cinco de março, Maximiano viaja novamente à Índia para nova reunião com representantes da Bharat Biotech.

No dia seis de março, o Ministério da Saúde pede à Precisa para aumentar o número de doses de Covaxin. Das 20 milhões pedidas inicialmente, a quantidade passou para 50 milhões. Apesar do empenho brasileiro para adquirir as doses de Covaxin, a agência reguladora indiana não liberou a documentação necessária para que a Anvisa aprovasse a importação do imunizante. Os papéis garantiriam a eficácia e a segurança da vacina.

Por isso, no dia 26 de março o Ministério das Relações Exteriores entrou em contato com a embaixada brasileira na Índia e "roga providências" para que o Itamaraty atuasse junto à agência reguladora indiana para liberar a documentação necessária. Como a documentação não foi liberada a tempo, no dia 29 de março, a Anvisa negou "pedido de boas práticas" à Covaxin e, dois dias depois, não autorizou a importação do imunizante.

No dia sete de abril, um telegrama reservado do embaixador brasileiro na Índia, em posse da CPI da Covid e obtido pelo GLOBO, informa ao Ministério das Relações Exteriores que a agência reguladora indiana não estava "respondendo satisfatoriamente", impondo dificuldade até mesmo para marcar reuniões para discutir a questão. E informou o diálogo com autoridades indianas:

"Não obstante a decisão tomada pela Anvisa de negar o primeiro pedido de importação emergencial da Covaxin pelo Ministério da Saúde, permanece o interesse da agência brasileira em manter diálogo com sua contraparte indiana e em eventualmente receber informações técnicas adicionais sobre a vacina produzida pela Bharat Biotech, com vistas a possível reexame no futuro". No dia 14 de maio, a Anvisa aprovou a importação do medicamento, com restrições.

Representante da Covaxin no Brasil, a Precisa afirmaou ao GLOBO que a Madison Biotech é uma subsidiária da Bharat Biotech. Não informou, contudo, por que foi necessário o intermédio de outra empresa, com sede em Cingapura, para fechar a negociação. O GLOBO entrou em contato com a Bharat Biotech, mas não teve retorno para essa pergunta e nem sobre o valor que será destinado à Precisa na negociação.
Extra/Show Francisco

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