domingo, 6 de março de 2022

Até onde vai o direito à livre manifestação do pensamento

A Constituição Brasileira defende a liberdade de expressão, mas condena quem a usa como discurso de ódio

POR GABRIELA LESSA


O ser humano nasceu para se comunicar, se expressar e construir os próprios ideais com base em diferentes ideologias, crenças e desejos. No Brasil, a liberdade de expressão está defendida no artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988. Mas, até aonde vai o direito de falar tudo o que se pensa? O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de Campos dos Goytacazes, Filipe Estefan, alerta que a disseminação de ofensa à honra, mentiras, discurso de ódio ou guerra e tudo o que venha a pregar violência e ameace a paz e segurança nacional não pode ser confundido com liberdade de expressão.
“A escritora britânica Evelyn Berenice Hall cunhou uma frase que exprime bem o conceito de liberdade de expressão: ‘Posso não concordar com nenhuma das palavras que você disser, mas defenderei até a morte o direito de dizê-las’. Significa dizer que a liberdade de expressão assegura a pluralidade de posicionamento de diferentes vertentes políticas e ideológicas, se tornando um dos pilares da democracia. Paralelo a isso, vivemos em uma sociedade onde já não se comporta mais a expressão do crime como pano de fundo para o sucesso argumentativo”, enfatizou Filipe Estefan.

Vitor Menezes

Filipe Estefan

O pesquisador e jornalista Vitor Menezes explica que a democracia é fundamentada na conservação e preservação da vida em sociedade, porém, é um regime frágil. “Demanda atenção com o limite tênue entre liberdade de expressão e discurso de ódio, por exemplo. No caso do jornalismo, esses limites são bastante conhecidos, embora nem sempre respeitados. Tivemos e ainda temos, infelizmente, jornalistas que sequer observam o próprio código de ética da profissão, que preconiza, ao mesmo tempo, a defesa da liberdade de expressão e o exercício da opinião com responsabilidade”, disse.
Wellington Cordeiro, presidente da AIC

O código de ética do jornalista instrui, reforça e detalha os direitos e deveres de um profissional da comunicação. O artigo 7º diz: “O compromisso fundamental do jornalista é com a verdade dos fatos, e seu trabalho se pauta pela precisa apuração dos acontecimentos e sua correta divulgação”. Ou seja, informação com base sólida e verdadeira. Entretanto, grande parte da população não possui as mesmas instruções e, por isso, há extensa disseminação de posicionamentos em redes sociais sem responsabilidade e ética, conforme analisa o presidente da Associação de Imprensa Campista (AIC), Wellington Cordeiro.
“Penso que essas duas características não deveriam estar atreladas apenas ao exercício do jornalismo profissional, mas um princípio de vida para todos que de alguma forma produzem ou reproduzem informação. As redes sociais não criaram esse comportamento humano de tentar impor convicções pessoais e irreais, mas acabaram dando voz e trazendo à tona essa artilharia maléfica que tanto prejuízo traz para a população em geral”, disse Wellington Cordeiro.

Rede social e a cultura do cancelamento
Com a solidificação das redes sociais na rotina mundial, elas se tornaram meios de expressão e manifestação de opinião. Com isso, surge a cultura do cancelamento, que, para o bem ou para o mal, também é uma forma de se expressar, segundo Vitor Menezes, que explica que é preciso cuidado para não embarcar “acriticamente no questionamento do chamado cancelamento, a despeito até mesmo do nome infeliz, negativo. Cada caso é um caso”, disse.

Redes sociais estão na cultura no brasileiro (Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil)

Ainda segundo o pesquisador, há ocasiões em que o cancelamento é uma resposta justamente aos que acreditam que podem dizer qualquer coisa sobre pessoas e grupos. “Se usuários de redes sociais iniciam uma campanha de cancelamento de um notório racista, por exemplo, ou, hipoteticamente, de uma marca de roupas que utiliza trabalho escravo, podemos ver nisso uma forma de posicionamento espontâneo com algum indicador de vigor democrático, civilizatório”, analisa.
Um dos casos mais recentes divulgados foi do ex-apresentador do Flow Podcast, Bruno Aiub, também conhecido como Monark, que foi muito criticado e “cancelado” nas redes sociais, em fevereiro deste ano, por fazer apologia ao Nazismo em seu programa. Com isso, ele foi desligado da empresa, perdeu patrocinadores e foi impedido pelo YouTube de criar seu próprio canal na plataforma.

Já em Campos dos Goytacazes, uma acusação mascarada de liberdade de expressão nas redes sociais, em outubro do ano passado, gerou o “cancelamento” social de um motorista de aplicativo, que começou a ser atacado nas plataformas e perdeu clientes, já que muitas pessoas se recusavam a fazer corrida com ele. Este foi o caso de Paulo Roberto, que foi acusado por três jovens, que usaram do direito à livre expressão e o denunciaram nas redes sociais. Elas expuseram foto dele, do carro e dados pessoais, dizendo que ele estaria jogando líquido sedativo como se fosse álcool em gel para realizar higienização no veículo. Após laudo do instituto criminalista, ficou comprovado que o suposto líquido sedativo se tratava apenas de álcool.

De acordo com Filipe Estefan, a Legislação e os tribunais têm avançado na área de crimes na Internet, mas ainda há muito a se percorrer. “A Internet é um grande veículo de disseminação da cultura e do conhecimento, uma verdadeira revolução na vida do homem moderno. Contudo, infelizmente, algumas pessoas fazem uso errôneo dessa ferramenta, causando desconforto, insegurança e, algumas vezes, a prática de crimes. Percebo que, por mais que haja a intervenção do poder judiciário em alguns casos, para fazer cessar os abusos e diminuir a voracidade desses malfeitores, o comportamento abusivo ainda persiste e ganha contornos indesejáveis”, fala o presidente da OAB.
Comunicadores devem ter cuidado com opinião na TV

Casos de grande repercussão
As redes sociais intensificaram a discussão já existente quanto à liberdade de expressão e o questionamento das limitações acerca desse direito, que Filipe Estefan define como um conceito que prevê a oportunidade de uma ou mais pessoas expressarem suas ideias, não importando se concordam, divergem em alguns pontos ou discordam umas das outras, a respeito de qualquer tema ou indivíduo.

Entretanto, ele reitera que existem crimes que não podem ser confundidos com a livre expressão de pensamentos e opiniões. No Brasil, alguns casos tiveram grande repercussão quanto às consequências de expressões mal empregadas. Em 2011, o humorista Rafinha Bastos foi repudiado por uma piada feita contra a cantora Wanessa Camargo. Segundo internautas, remetia ao estupro do bebê da cantora, que estava grávida na época. Rafinha foi demitido da emissora em que trabalhava e foi condenado pela Justiça, em janeiro de 2012, por danos morais e pagou uma indenização de 10 salários mínimos a cada um dos autores da ação (a cantora, o marido e o filho).
Em 2021, o jogador de vôlei Maurício Souza realizou comentários considerados homofóbicos nas redes sociais ao criticar a editora DC Comics por ter anunciado que o personagem do Super-Homem vai se descobrir bissexual em uma nova história em quadrinhos. O caso repercutiu negativamente na Internet, gerando consequências para o atleta, que foi demitido do clube pelo qual jogava, perdeu patrocinadores e foi amplamente criticado.
Supremo Tribunal Federal. (Foto: Valter Campanato/Agência Brasil)

O que diz a Lei
Ainda de acordo com o presidente da OAB, a liberdade de expressão é uma garantia fundamental de manifestação do pensamento, mas existem crimes que margeiam os critérios de uma falsa aplicação dessa liberdade.
“Sem sombra de dúvidas, injúria, calúnia, difamação, discriminação são crimes cometidos contra o direito de personalidade humana, que também é um direito fundamental. Não se pode confundir liberdade com libertinagem de expressão. A expressão escrita ou falada deve se pautar pela observância a honra, a boa fama e a respeitabilidade do indivíduo, sob pena de censura, sem prejuízo das sanções penais e indenizatórias, conforme disposto no Código Civil”, detalha Filipe Estefan.

O advogado ainda explica que é necessário analisar cada caso de forma individual, a fim de saber se trata-se de um crime ou não. “O princípio da ponderação de bens ou interesses, levado a efeito em muitos julgamentos do Supremo Tribunal Federal (STF) determina que os princípios constitucionais, quando conflitantes, devem ser sopesados e ponderados, prevalecendo, no caso concreto, aquele de maior peso axiológico (teoria sobre os valores morais), segundo o princípio da proporcionalidade, nas suas três vertentes, a saber, necessidade, adequação e proporcionalidade. Portanto, não se trata de limitação, mas de equidade e observância aos direitos de personalidade, que também têm status constitucional”, finaliza.

O que a Constituição diz sobre a liberdade de expressão:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

III – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;

V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;
VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;

IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;

XIV – é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional.
Fonte Terceira Via

Nenhum comentário: